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A história nossa de cada dia

omo como referência um daqueles livros que me acompanham desde a graduação. Trata-se de “Como se escreve a história” (1998), de Paul Veyne, para refletir um pouco sobre as relações entre Literatura, História e os fatos que nos são contemporâneos.

Durante séculos, a História foi vista “de cima”, isto é, era a História dos vencedores, dos grandes heróis. No caso brasileiro, creio que esse dado seja bem emblemático: Quem descobriu o Brasil? Pedro Álvares Cabral; Quem declarou a Independência do Brasil? Dom Pedro I; Quem proclamou a República? Marechal Deodoro da Fonseca.

Temos fatos importantes da nação, que tiveram inúmeros homens e mulheres envolvidos, mas que a História sonegou um lugar de importância. O mesmo raciocínio vale para heróis e heroínas regionais que nunca ganharam projeção nacional. Cabo Toco, cujo nome era Olmira Leal de Oliveira, foi a primeira mulher a alistar-se na Polícia Militar do Rio Grande do Sul, atuando como enfermeira e combatente na Revolução de 1923 nas tropas leais a Borges de Medeiros, então governador.

Ela deixou a farda em 1932 e morreu praticamente na miséria, em 1989, alcançando algum reconhecimento histórico porque compositores e cantores nativistas descobriram-na e homenagearam-na em um festival de música em 1987.

Neste sentido, é preciso recorrer a Paul Veyne que nos esclarece que a História é uma narrativa de eventos – e eu sublinho: uma narrativa, que, segundo o estudioso, não faz reviver esses eventos, mas os reconstrói com base em documentos, indícios, testemunhos.

Paul Veyne (1998, p. 18) afirma: “Como o romance, a história seleciona, simplifica, organiza, faz com que um século caiba numa página, e essa síntese da narrativa é tão espontânea quanto a da nossa memória, quando evocamos os dez últimos anos que vivemos”.

O historiador tem o condão de escolher – com base nos elementos que dispõe, aquilo que dará relevância. Ainda assim, a sua “escolha” é problemática, porque, conforme Veyne, a perspectiva de Napoleão sobre a Batalha de Waterloo é diferente do soldado que esteve no campo de combate, foi ferido e retornou ao lar com o corpo mutilado, por exemplo. Provavelmente, nunca haverá, nos livros de História, uma multiplicidade de olhares sobre o mesmo fato. Faz-se uma seleção.

Na Literatura, valho-me de “Crônica da casa assassinada”, de Lúcio Cardoso, em que o narrador conta a história de uma família valendo-se de cartas, dando voz a diferentes narradores, que se enfrentam, contrapõem, mas que acabam dando um importante e apurado panorama da família que se encontra numa determinada situação (não vou antecipar a temática da obra).

Não se busca, evidentemente, em termos literários, uma verdade e, com isso, quero aqui relativizar o conceito de verdade que sempre se atribuiu à História, que é dita oficial.

Nasci e cresci no estado mais meridional do Brasil, marcado pela relação conturbada com os espanhóis, pela influência indígena, pela parca, mas marcante, presença do elemento negro e pela forte mitificação do processo imigratório europeu. Conforme Regina Zilberman (1992), estudiosa da Literatura produzida no Rio Grande do Sul, dá-se ênfase a inúmeros fatos históricos, o que permite uma releitura – e talvez uma melhor compreensão – desses eventos.

Na mesma medida em que as estâncias de criação de gado cresciam, modernizavam-se, nas décadas iniciais do século XX, havia uma espécie de expurgo do trabalhador rural que acabava alojando-se nas vilas periféricas das pequenas ou grandes cidades. Cyro Martins tematizou esta questão na chamada “trilogia do gaúcho a pé”, que é composta por três romances que, sob certo aspecto, dão ênfase à miserabilidade do gaúcho sem cavalo.

Cabe aqui uma observação: ao gaúcho tradicional costuma-se associar a figura mítica do centauro, meio homem, meio cavalo, daí se atribuir a denominação “centauro dos pampas”, um ser bifronte, meio peão, em tempos de paz; meio soldado, em tempos de guerra. A figura mais emblemática, neste sentido, é um certo Capitão Rodrigo (Cambará) de “O tempo e o vento”, que aparece vestido com botas e bombachas e dólmã militar em sua chegada à cidade de Santa Fé.

Os gaúchos de Cyro Martins, porém, estão desprovidos de cavalos, de posses e de esperanças, eles são párias. Em “Sem rumo” (1937), “Porteira fechada” (1944) e “Estrada nova” (1954), o autor concede espaço às histórias desses párias. Em “Porteira fechada”, Guedes é o personagem principal: forçado a deixar uma pequena porção de terra que arrendava na zona rural, a família reúne as suas tralhas e ruma para Boa Ventura, uma vila das tantas vilas que recebiam famílias egressas do campo.

Guedes não consegue trabalho. Vende o cavalo. A mulher, Maria Luíza, dedica-se aos serviços de costura, os filhos vão se perdendo: doenças, prostituição. Guedes é pego roubando ovelhas e é preso. Miseravelmente, depois de solto, vende os arreios do cavalo. Não há mais nada que o vincule à vida campeira. Suicida-se.

As narrativas literárias que se espalham de Sul a Norte, de Leste a Oeste, em alguma medida trazem à tona esse universo – de uma sociedade que se moderniza, mas de homens e mulheres que perdem espaço, que se acumulam em vilarejos, na periferia, sem formação educacional que lhes ofereça emprego qualificado, eles são invisibilizados pela História. Passam ao largo…

REFERÊNCIAS

VEYNE, Paul. Como se escreve a História. Tradução Alda Baltar e Maria Auxiliadora Kneipp. 4.ed. Brasília: EdUNB, 1998.

ZILBERMAN, Regina. A literatura no Rio Grande do Sul. 3.ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1992.


Elaine dos Santos

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