Saudades do “doctor” Rohde

Desde a morte da mãe em 1988, o mês de dezembro tornou-se difícil. O aniversário dela era no dia 09, ademais, o Natal sempre foi tido como a festa da família e a nossa família reduzia-se, inicialmente, ao pai e a mim; depois, era só eu. Nos últimos anos, o Natal começou a ser “enfrentado” na companhia do “tio” Talito, da “tia” Maeca, da Marta, da Giulia e do Giovani – meus primos, desde muito tempo, “sumiram” na curva do tempo.
Então, era ceia, boas conversas, música, eu tinha uma família de novo. Meio postiça, mas era uma família.
Na verdade, a mãe e o doctor Rohde conheciam-se desde jovens, eram companheiros de baile, viajavam em carroças para irem a bailes. Com cerca de 13 ou 14 anos, eu comecei a frequentar a residência do então médico Talito Rohde, a minha mãe era responsável pela limpeza do consultório e eu acompanhava-a. Entre outras coisas, porque ela dizia que eu precisava aprender a “me comportar como gente” (claro, ela queria dizer gente distinta, educada, com certo trato nas questões de etiqueta. Lembro que, sempre, ela chamava a atenção para a mesa posta para o jantar, para os copos, para os talheres, para o guardanapo). 
Aos 16 para 17 anos, o meu primeiro emprego, literalmente, bateu à porta de casa: a dona Marlene enfrentava alguns problemas de saúde e precisava de uma auxiliar. O casal decidira que eu tinha o perfil para a tarefa e ela foi conversar com os meus pais, pedir-lhes autorização para que eu trabalhasse um turno no consultório. No ano seguinte, findo o ensino médio, passei a trabalhar durante dois turnos. Em seguida, consegui um emprego com salário maior e seguiu a vida. A minha mãe continuou trabalhando com a família.
Em 1988, a minha mãe adoeceu gravemente e o Talito foi presença constante como médico e ser humano. Orientou-me a cada passo, afinal, eu era um pessoa absolutamente imatura, recém saída da adolescência. Dois anos depois, lá estava ele na doença da minha avó paterna, a vó Manoela. De novo, 100% de presença, 100% de orientação. 
O pai e eu sempre fomos pacientes dele. Naquele 22 de dezembro de 2005, quando levaram o pai ao seu consultório, em seu primeiro AVC, ele não soube identificar o problema, faltaram informações. No dia 13 de janeiro de 2006, eu estava com o pai e, de imediato, percebi que era um AVC, levei-o ao hospital e o Talito atendeu. No dia 03 de abril de 2007, os vizinhos levaram o pai até a casa do Talito, havia um novo AVC. No dia 05 de abril de 2007, o pai teve dois novos AVCs. Foram 25 dias no hospital, foram 25 dias intercalados entre almoços no Dedé e na casa do Talito. Foram 25 dias de orientações sobre como proceder em caso de recuperação. Até que ele perguntou se eu estava preparada para receber o pai em casa, embora tenha avisado que não seria fácil. Independente disso, até o dia 08 de junho de 2011, às 16h40min, havia um médico e um amigo atendendo o meu pai. Dali para frente, havia um amigo no velório do meu pai e no amparo que eu precisei dali para frente. 
O mês de dezembro continua doloroso, agora, ainda mais. No dia 02, sábado, se estivesse vivo, o Talito estaria fazendo 83 anos. No dia 19, serão três anos de ausência. Naquela manhã, eu estava me preparando para ir ao consultório, quando veio a triste notícia. Ainda fiquei em casa por um longo tempo... Lembrei o consultório velho, perto da rodoviária, cheio de gestantes; cheio de bebês, todos recém nascidos, com mães e avós a balançá-los para que parassem de chorar; lembrei tanta coisa que se passa dentro de um consultório médico e que morre dentro de um consultório médico. Lembrei o dia anterior à morte da minha mãe, quando, vindo de uma viagem a Porto Alegre, ele foi a nossa casa e disse-me que a levaria para o hospital porque não era justo que ela morresse na minha cama. Lembrei a noite em que a minha avó morreu, ele esteve no quarto e falou: “o tempo dela está acabando”! Cinco horas depois, ela estava morta. Lembrei a manhã em que o meu pai morreu, quando o “doctor” me disse: “não tenha esperança”, sete horas depois, o meu pai estava morto. Lembrei uma tarde em seu consultório, das tantas tardes em que eu ia ao consultório para conversar com ele, na minha fase depressiva. Já na saída, ele disse: “A tua mãe deve ter muito orgulho de ti, da pessoa em que tu te transformou e eu tenho orgulho de ti”.
Eu sei que expressei nessas linhas a minha saudade de um médico e de um amigo, mas sei também que manifestei a saudade de muita gente, gente que brigava com ele, mas confiava demais nele. É isso, “tio Talico”, o senhor faz falta!
Professora Elaine dos Santos
Doutora em Letras
 

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