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Memória de Restinga Seca

August Saint Hilaire foi o mais importante viajante estrangeiro que esteve no Rio Grande do Sul durante o século XIX e que fez um verdadeiro mapeamento da então província. A obra de Saint Hilaire, “Viagem ao Rio Grande do Sul”, é conhecida mundialmente e respeitada pela sua qualidade e preciosidade das descrições. Quem quiser augurar-se o título de conhecedor de História e cultura gaucha deve, obrigatoriamente, ter lido Saint Hilaire.

Os capítulos XIX, XX e XXI da obra enfocam, primordialmente, a região central: Capela de Santa Maria, Estância da Tronqueira, Estância da Restinga, Potreiro da Estiva, São João da Cachoeira. Nesta obra, está explicitamente descrita, pois, a existência de Restinga, fazendo-se o seu anúncio para o mundo culto do Ocidente.

Em virtude dos seus estudos, a professora Lacy Cabral Oliveira, em 1983, quando publicou o livro “Evolução histórica, política e administrativa do Município de Restinga Sêca”, registrou que parte do atual território do município pertencia à sesmaria de Jerônimo Dornellas de Souza, que lhe fora doada em 1817 e que o restante integrava a antiga Fazenda de Restinga Seca, doada, em sesmaria, ao Cel. Antonio Gonçalves Borges. Assim sendo, o primeiro registro histórico da existência de Restinga Seca, com esta denominação, data de 1817 em escritura pública. Saint Hilaire confirma-o em sua passagem por volta de 1820. Retira-se, pois, a história popular que o vilarejo chamara-se, inicialmente, Caixa D’água ou se assim o foi, o nome Restinga Seca já era conhecido e retomou a primazia anos mais tarde.

Estamos, aos poucos, buscando reminiscências sobre a nossa Tinga, a terra que recebeu o nosso cordão umbilical, que nos acolheu com o primeiro sopro de oxigênio. Para tal, os estudos da professora Lacy têm sido fundamentais. Ali, sabemos sobre os Martins Pinto, signatários de sesmarias, que foram vendendo as suas terras para os colonos alemães que chegavam a Santo Ângelo (Agudo) e não encontravam as condições esperadas: Rohde, Hübner, Richter, Perske, Diettmer, Ehrhardt, Schwert, Köhn Meyer, Marquet foram povoando o que, mais tarde, seriam Vila Rosa, Várzea do Meio, Três Vendas, São Miguel. Por outro lado, vão surgindo também Dornelles, Mostardeiro, Leal, Santos, Crispim, Pereira... Dissertações de mestrado e teses de doutorado incluem Carvalho, Cavalheiro, Souza, Rezende, descendentes de vovô Geraldo e de tantos outros negros que escolheram viver nos limites entre as sesmarias dos Martins Pinto e dos Carvalho Bernardes.

Num salto cronológico, chegamos a meados do século XX, à emancipação, saem de cena os homens da História dos livros e entram no palco os homens com quem convivemos: “vô” Eugênio Müller, o nosso primeiro prefeito, sempre tão circunspecto; “vô” Aldemar Müller, o nosso terceiro prefeito, com todas as características que somente avôs podem ter; “seu” Lulu, Luiz Mohr Neto, o vovô que “construiu” o Caseb; “tio” Herbert Bischoff, o homem da casa de ferragem; a eles somam-se outros que não estão nos livros, mas, igualmente, estão nos corações: o seu Baptista Giuliani e, com ele, a dona Esther, ainda lúcida e saudável; o meu amado “tio” Helio Magoga e a dona Morena, Amália Giuliani Magoga, que o destino ceifou a vida tão cedo; o Kiko, meu Deus, e a sua extrema gentileza, motivo de amor de dez entre dez meninas em sua época de adolescência, meu padrinho amado, João Francisco Giuliani, que já está no andar de cima. E, por mencionar médico, o Talito, meu segundo pai; a sua prima Carmen, sempre tão amiga, tão conselheira e, com ela, o Oraci Pozzebon, ex-presidente da Cotrisel, objetivo, lúcido, determinado. Os nomes sucedem-se na memória, atabalhoadamente, num misto de bem querer e de saudade.

Junto deles, vêm outros nomes, nomes que nunca figurarão nas páginas da História: os anjinhos sepultados no Cemitério dos Anjos, ali perto da Grameira, já abandonados; o Carapau, cujo túmulo incrivelmente mantém-se intacto, o tio Rocha, cujo túmulo foi arrancado (e, ao referir Carapau e tio Rocha, é impossível não trazer o nome do bondoso Pedro Giuliani, morto no longínquo ano de 1967, que pagou a construção da residência final daqueles dois pobres homens: “Carapau, rigoroso cumpridor da ordem da lei” e “Tio Rocha, veio de Lavras, foi dos Macedo e morreu nosso”). Eles vêm, transitam pela avenida: “Tem cigarro, tem?”, é o Nequinho! “Dá um real! Eu tenho canço!”, é o Icha. O Ramirinho aparece narrando uma partida monumental do seu Inter e a dona Eracema da Silva, vulgo Lelenga, dá de ombros, não se interessa pelo assunto. Não imitem motos, a Lambreta pode não gostar e a peleia estará cerrada. Ah, muito cuidado com o Romano! Quem vai comprar os produtos vendidos pelo Caporal? O que nos salva é que todos iremos para o céu, todos vimos Jesus empurrando o seu carrinho para coletar lixo reciclável.

Restinga é tão rica, é tão pródiga e tem/teve e terá sempre gente maravilhosa. Só é preciso recuperarmos a nossa autoestima, lembrarmos que habitamos o mesmo chão dos nossos pais, que amaram o apito do trem, que passearam na gare, compraram balas no vagão restaurante, tomaram grapete no hotel do Trepado, dançaram na avenida ao som dos tambores, ao lado da Julieta, do Rufino, da Romilda, da Eni, dos Dornelles, lá...lá naquela dobra do tempo, perdida dentro de nós, que os homens deram o nome de anos 70.

O nosso grupo está disponível em https://www.facebook.com/groups/107181586086196/ Entra lá, tem tanta gente conhecida, gente que foi embora nos anos 60 e 70, mas que nunca esqueceu Restinga, nunca nos esqueceu e que se reconhece nas fotos e nas histórias narradas.

Elaine dos Santos

Professora Doutora em Letras

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